Na primeira pessoa: “O amor pelos animais pode tornar-se uma adição. Também é stressante; não conseguimos salvar a vida de todos”

Lembro-me de que, quando era miúda, a minha família tinha um cão, um Serra da Estrela. Vivíamos na freguesia de Naves, entre Vilar Formoso e Almeida, na raia. Recordo-me de que também andavam por lá gatos. Mas com nove anos vim estudar para Lisboa, e não tenho nenhuma memória especial desses animais. Mesmo em Lisboa, nunca tive animais de estimação, até que, há meia dúzia de anos, a minha filha Rita, já crescida, com 27 anos, por aí, disse que queria um gato. Um dia, foi com o meu marido a uma associação, para adotar um gato, e trouxeram duas gatas, que eram irmãs. Felizmente, porque são muito giras e umas malucas. Entretanto, a Rita saiu de casa e levou-as. Foi viver com o namorado, que já tinha dois gatos…
Mas, antes disso, adotámos uma terceira gata. Esta era especial, muito independente – infelizmente, teve um problema de saúde e faleceu há pouco tempo. E, entretanto, adotei mais dois gatos. Um deles tirei-o da rua. Era muito dócil e não quis pô-lo outra vez na rua. A partir daí, o nosso amor pelos gatos foi quase instantâneo, é uma alegria. É impressionante, de facto, este afeto que uma pessoa cria com os animais e que eu desconhecia.
Costumo dizer que descobri a minha vocação depois de velha – muito depois dos 50. Hoje, todos os dias, ao final da tarde, dedico entre uma hora e meia a duas horas e meia a dar de comer a várias colónias de gatos de rua nas redondezas do sítio onde moro, na Amadora, o que me custa cerca de 200 euros por mês. Tenho duas colónias registadas em meu nome, como cuidadora, mas depois ainda alimento outros gatos naquela zona. Esta ideia de criar as colónias apareceu com uma legislação que surgiu há uns anos e da qual nasceu o programa CED – Captura, Esterilização e Devolução, que é concretizado, penso eu, na maioria das autarquias.
O objetivo é o de reduzir ao máximo os animais errantes, sobretudo através da esterilização, para que não se reproduzam. Os gatos, então, têm um poder de reprodução enorme. Com intervalos curtos de tempo, as gatas ficam grávidas, e podem ter ninhadas grandes. O programa existe, mas depois não há meios para o pôr em prática. Quem faz muito desse trabalho são, de facto, os cuidadores das colónias.
Por norma, as câmaras municipais fazem acordos com associações, às quais as colónias são atribuídas, e depois nós, cuidadores, quando capturamos um gato, por exemplo, vamos à associação respetiva para o esterilizar. No meu caso, levo-os com frequência à LPDA [Liga Portuguesa dos Direitos do Animal], que tem um acordo com a Câmara da Amadora, tanto para os esterilizar como para outros tratamentos veterinários que sejam precisos. Esses procedimentos são gratuitos, mas, para que eu possa fazer isso, tenho de estar registada como cuidadora. Assim evitamos o ciclo de reprodução sucessivo.
As duas colónias que tenho registadas têm características diferentes: numa, os gatos tendem a ficar no sítio onde vou ao encontro deles. Na outra, são mais flutuantes, errantes. Por exemplo, ainda ontem [no passado dia 25] tive uma notícia péssima: apareceu por lá uma gatinha lindíssima, cinzenta e branca, que tentámos apanhar, mas não conseguimos, porque ela não entrou na armadilha para a levarmos para a esterilização. Soube que morreu atropelada.
“Não tenho folgas neste trabalho”
Normalmente, apanhamos os gatos com a armadilha – um dispositivo perfeitamente seguro para eles –, para os levarmos ao veterinário. Eles sabem que lhes vamos pôr comida ao final da tarde; têm um bom relógio. Põe-se comida dentro da armadilha e, quando entram, o dispositivo tem um sistema de fecho automático da porta. Isto pode dar muito trabalho e durar muitas horas. Mas também já os consegui apanhar à mão: quando os gatos são meiguinhos, às vezes agarram-se ao colo e, depois, é só pô-los dentro de uma transportadora.
Há alturas em que não aparecem, e deixo a comida nos sítios e nas caixinhas habituais. Como já disse, são gatos de rua, errantes, e acontece alguns mudarem de locais – na zona onde atuo há muitas colónias –, enquanto outros são fiéis, andam sempre pelos mesmos sítios. Mas também trabalho com as pessoas que têm outras colónias. Por exemplo, quando é para fazer capturas tenho uma amiga que as faz comigo. As pessoas que andam neste meio vão criando redes de colaboração.
Costumo dizer que descobri a minha vocação depois de velha – muito depois dos 50. Hoje, todos os dias, ao final da tarde, dedico entre uma hora e meia a duas horas e meia a dar de comer a várias colónias de gatos de rua nas redondezas do sítio onde moro, o que me custa cerca de 200 euros por mês
Sabemos, na colónia, quais são os gatos que já estão esterilizados porque, depois do procedimento, os veterinários fazem-lhes um pequeno corte numa orelha. Mas, por vezes, pedimos que esse corte não seja feito, quando prevemos que um gato é bom para ir para adoção. Tentamos sempre, quando os gatos são jovens e meigos – ao invés dos bravos, que estão muito habituados a estar na rua e não gostam de estar fechados –, que sejam adotados. E, por norma, acabamos por conseguir, mais cedo ou mais tarde. Não dou gatos a qualquer pessoa, mas, até agora, não tenho razões de queixa nas adoções que fiz. Encontrei ótimos adotantes.
Não lhes dou só ração. Todos os dias também lhes dou patês e húmidos. No entanto, o amor pelos animais pode tornar-se uma adição. Também é stressante, porque queremos fazer sempre mais e temos muitas limitações. Não conseguimos salvar a vida de todos os gatos. Mas isto é uma coisa que não nos deixa: por exemplo, ando sempre com comida e ração na carteira, para dar a algum gato que encontre na rua.
Às vezes, temos de pôr um freio em nós próprios, ou a pessoa acaba por não ter vida. E isso não pode acontecer. À partida, não tenho folgas neste trabalho, mas quando preciso, e existe a rede de que falei, peço a alguém que me substitua. Também tenho de ter alguma vida: ir jantar fora, ao teatro ou ao cinema. Temos de pensar que só podemos fazer o que está ao nosso alcance. Não podemos salvar o mundo.
Depoimento recolhido por J. Plácido Júnior
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